terça-feira, 14 de setembro de 2010

"LUGARES" (crítica)


Desde que assisti à peça pela primeira vez, já estava eu a tentar organizar minhas impressões. No entanto, essa tarefa de escrever e de pensar sobre a peça tem sido muito dificultosa.
Acompanhei, desde o início, pelo blog (ou pelo entusiasmo do Sandro), os ensaios, os depoimentos, os avanços feitos pela Cia. Putz! para tirar “Entre Infernos” do papel. Mas fui, mais uma vez, pego desprevenido pelo texto. As palavras de Tarcízio Dalpra Jr. me dizem muito: a forma como as organiza, as repetições, os sentidos, os intercâmbios de sentido; tudo isso me agita enquanto espectador. Além, bem mais além, o que Dalpra Jr. escreve é investido de uma multiplicidade sedutora, que faz com que a história não seja somente sobre a história, mas seja sobre todas as coisas. Isso me toca.
Voltei ainda mais duas vezes ao teatro para assistir à peça novamente. Não para saber mais do texto, porque este já havia me dito de uma só vez muito mais do que eu fui capaz de lidar, mas voltei para dar conta de apreciar a montagem, essa linda montagem proposta pelo Pablo, executada com um primor comovente pelo elenco e pela produção. Figurino, cenário, iluminação, música, sonoplastia, direção: cabem aqui elogios dos mais diversos; também seriam muitas as considerações a fazer sobre cada detalhe, mas sei que olhos mais treinados do que o meu lhe dirão sobre tudo isso de uma maneira mais clara e fértil.
No entanto tenho uma particular consideração a fazer sobre o “Entre Infernos”, que diz muito a mim. Vejo muito claramente uma ideia que vai desde o texto até o último suspiro dos atores. Uma ideia de lugar. Não sei se essa é a palavra exata, mas vou ficar com ela na falta de uma melhor. Eu vejo muitos lugares que me fascinam nessa montagem.
Adoro essa vila, que está longe, em um lugar que não sabemos qual é, mas que é muito próxima, é a nossa vila. Adoro o templo, a casa de Deus, e me sinto protegido e vulnerável ao mesmo tempo. Adoro a floresta, adoro a dispensa. Adoro também os lugares que não estão lá, mas ficam fazendo força para entrar, como o acampamento de Nereu Vargas e seus homens, do qual não é possível se desligar durante todo o espetáculo.
Há alguns lugares muito amplos, como o tempo, as possibilidades (que acontecem e não acontecem), a ditadura, a crença, as ideologias. Há outros lugares, menores, mas que delimitam muitas ideias: as janelas, as portas, o lado de cá e o lado de lá, os livros (sagrados ou não), a caixa de presente, as garrafas de vinho e de suco (de uva e de laranja). Há ainda esse outro terrível lugar, do qual me sinto impedido de falar alguma coisa: a tina.
Mas os melhores lugares de se ver (pois não arrisco dizer “de se estar”) são os personagens, com olhares e vozes que entregam obstinações e medos deliciosamente perigosos. Todos os personagens, todos eles, são para mim intrigantes lugares. Dois desses lugares me tocam profundamente: um deles é o Irmão Saulo, que é o guarda e o algoz, o líder e o servo, o sussurro e o grito, a força e a fraqueza, a cegueira e a clareza. Um personagem vasto como este nos dá a liberdade de olharmos para o ser humano. O outro é Stela, que tem dúvida e decide, que tem medo, mas não fica paralisada. A Stela, com suas falas práticas, femininas, é a empatia personificada e permite ao público uma folga, um descanso para olhar para si mesmo.
[Se você me permitisse uma pergunta, Tarcízio, ou uma resposta, eu lhe perguntaria: de que lugar você escreve?]
Esse título, “Entre Infernos”, sugere-me ainda muitos outros lugares. Eu acabei aceitando um no qual me senti muito desconfortável, com ratos, vinho ruim e escuridão. Não houve como sair ileso de uma experiência como a de “Entre Infernos”, mas sinto que tive um ganho depois de tanto aperto, como aquela história de que o antídoto pode estar no próprio veneno: enxergo melhor, convivo melhor, creio melhor.

Ulisses Belleigoli
(Jornalista, membro da Academia Granberyense de Letras. É escritor e autor do romance DOM, lançado em 2006 pela Funalfa).

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