terça-feira, 24 de agosto de 2010

"REFLEXÕES DE UMA QUASE ATRIZ" (crítica)

Nunca gostei do tema de “Entre infernos”. Desde o primeiro momento em que segurei o texto, em 2008, senti-me desconfortável entre suas frases duras. Cinismo. Intransigência. Suicídio. E eu querendo delicadeza. Pois bem, quando me dei conta, estava em uma sala de visitas, iniciando a montagem ao lado de amigos eternos. Eu e meu iogurte light. Eles e seus salgadinhos venenosos. Prazerosa mistura. Porém, não suportei permanecer entre a necessidade de entrega total e a minha falta de tempo. Abandonei “Entre infernos” com algumas feridas abertas. O que havia ficado até então? Rugas na testa. Afinal, eu percebia ali que, como atriz, a minha maior dificuldade era ser em cena o que eu não admitia ser na vida.
Lacuna.
Dia de estreia. Inveja de não estar ali. Já não sou do elenco, sou repórter bisbilhotando mundo desconhecido. Faço que não é comigo. Assumo meu papel na plateia (pelo menos, falta cadeira e ganho camarote no chão). Questiono-me: como tudo aquilo se fez na minha ausência? Vi apenas o filho parido. Na condição de jornalista, isso seria o bastante. Mas a atriz insiste sempre em espetar meus pensamentos.
Para minha sorte, fácil é falar sobre o que não levou seu suor. Então, vamos lá! Há tempos a cidade não via produção tão primorosa. Tão detalhista. Os dedos da direção estão marcados em todos os objetos do cenário, em todas as partes dos corpos dos atores. E mais, ela resolveu o que, em minha opinião, faltava ao texto. Um motivo para aquilo tudo. Sim, o perigo dos exageros (iogurte light faz bem, mas um veneninho também tem seu lugar). Genial. Observando tudo, o dramaturgo talentoso comoveu-se a ponto de entender que aquela história toda servia para ele. Se a arte transforma, aqui está um exemplo que vale a pena ser citado. Quanto às atuações... saborosas. Todos inteiros. Entretanto, aqui, a atriz de dentro não dá sossego. “Podemos sempre mais, mais, mais”, ela diz.
Para finalizar, algumas objetividades. A cena das garrafas é incrível. O figurino é impecável. O prólogo é de arrepiar. A sonoplastia esteve um pouco alta na estreia. O cheiro de vinho foi a melhor das escolhas. A referência ao Oficina realmente cabe. E, agora, uma obviedade: o que mais gostei em “Entre infernos” é me imaginar dentro dela, unindo a delicadeza que sempre busquei à aspereza que também ensina a existir. Eu não fiz parte da peça, mas ela faz parte de mim.

Raphaela Ramos
(Atriz e jornalista de cultura da Tribuna de Minas. Raphaela participou do início dos trabalhos de "Entre Infernos")

Um comentário:

  1. Fez parte. Em cada cena, cada fala ou gesto. Até mesmo no camarote plano baixo.

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